A proliferação do coronavírus originou uma grave crise de liquidez para as empresas, obrigando-as a buscar rapidamente por soluções que ponham em equilíbrio, mesmo em um reconhecido contexto de calamidade pública, tanto a saúde financeira do empreendimento quanto a manutenção dos postos de trabalho por ele gerados.
Por conta disso, desde a eclosão da pandemia, ganhou força a discussão sobre a possibilidade de o empresariado invocar, para se recuperar dos prejuízos sofridos durante a referida crise de saúde, o denominado “fato do príncipe”, aqui entendido como uma ação do Poder Público que onera excessivamente ou torna o impossível o cumprimento de uma determinada obrigação, qual seja, a preservação dos contratos de trabalho.
Ocorre que o instituto do fato do príncipe, sobretudo no âmbito trabalhista, não comporta aplicação irrestrita, tendo sua utilização limitada ao preenchimento concomitante dos requisitos impostos pelo art. 486 da CLT: a) paralisação temporária ou definitiva do trabalho; e b) verificação de ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou promulgação de lei ou resolução que impossibilite por completo a continuação da atividade.
Nem todos os acontecimentos se encaixam nas aludidas condições, servindo à análise apenas aqueles que tiverem a ver com a extinção do estabelecimento ou com a interrupção prolongada das atividades. Além do mais, a extinção ou a interrupção devem, necessariamente, decorrer de causas alheias e imprevisíveis, para as quais o empregador não concorreu direta ou indiretamente, justamente como disposto no art. 501 da CLT.
Servem como exemplos as situações nas quais o Poder Público, interditando espaços públicos ou privados, dificulta ou mesmo impede a atuação empresarial exercida nos entornos, o que em nada se confunde com a pandemia decorrente do coronavírus, esta última caracterizada por uma força maior descomunal, anormal e inesperada.
O encerramento de um estabelecimento por ato de autoridade municipal, estadual ou federal se diferencia da conjuntura que surgiu com Covid-19. As recentes ordens de fechamento temporário dos estabelecimentos, excetuados aqueles que exploram atividades essenciais, assim como as determinações de que as pessoas permaneçam em suas casas, visam salvaguardar a vida e a saúde de toda a coletividade, consagrando a prevalência do interesse coletivo em detrimento do interesse individual nas atuais circunstâncias.
Daí porque a análise do art. 486 da CLT, cuja redação versa sobre o fato do príncipe, imprescinde de uma interpretação condizente com a realidade, proveniente não da simples intenção de se obter reparação dos órgãos estatais, mas, sim, da constatação de que o aprofundamento do atual cenário exige medidas de natureza distinta, inclusive evitar o colapso da máquina pública, ora preocupada em alocar recursos para combater a pandemia.
Sob o enfoque jurisprudencial, poucos são os julgados em que a Justiça do Trabalho declara o direito à indenização ancorado no fato do príncipe, admitindo-o como causa excludente da responsabilidade do empregador. O que se vê na prática, por outro lado, é a atribuição do risco ao empregador, à luz do princípio da alteridade (art. 2º da CLT).
Pelos motivos expostos, reputamos inaplicável a teoria do fato do príncipe, seja para justificar possíveis rescisões, seja no intuito de ressarcimento por parte do Estado, cabendo o acréscimo de que eventuais decisões do empregador, se fundamentadas no art. 486 da CLT, poderão ser invalidadas individualmente em reclamações trabalhistas ou coletivamente por meio de ações civis públicas propostas pelo Ministério Público do Trabalho.
De qualquer forma, vemos com bons olhos outras alternativas para compensar a flagrante queda de faturamento, tais como a redução do salário em 25% (vinte e cinco por cento), com base no art. 501 da CLT, a pactuação de acordos individuais escritos, a implantação de banco de horas ou a concessão de férias individuais ou coletivas, já que oferecem menos riscos.